A memória é a gaveta dos guardados. Nós somos o que somos, não o que
virtualmente seríamos capazes de ser.
Minha bagagem são os meus sonhos. Fui o poeta das ruas, das vielas
silenciosas do Rio, antes que se tornasse uma cidade assolada pela violência.
Sempre fui ligado à terra, ao meu pátio.
No Rio Grande do Sul, estou no colo da mãe. Creio que minha fase atual, neste
momento, em 1993, reflete a eterna solidão do homem.
A obra só se completa e vive quando expressa. Nos meus quadros, o ontem se
faz presente no agora. Lanço-me na pintura e na vida por inteiro, como um
mergulhador na água. A arte é também história. E expressa a nossa humanidade.
A arte é intemporal, embora guarde a fisionomia de cada época. Conheci em
Paris um escultor brasileiro, bolsista, que não freqüentava museus para não
perder a personalidade, esquecendo que só se perde o que se tem.
Cada artista tem seu tempo de criação. É dificil saber quando começa a
gravidez e quando se dá o parto. Há pintores que são permanentemente prenhes,
parindo ninhadas, como era o caso de Picasso. Eu, antes de iniciar a viagem -
o quadro -, consulto minha bússola interior e traço o rumo. Mas quando estou
no mar grosso, sempre sopra um vento forte que me desvia da rota
preestabelecida e me leva a descobrir o novo quadro.
Todo criador é um Pedro Álvares Cabral. A lenda chinesa ensina que a
espontaneidade - Tchuang-tseu desenhou um siri num abrir e fechar de olhos -
exigiu de Tchuang-tseu anos e anos de aprendizado e observação da natureza,
que, como se sabe, é a fonte do conhecimento. O exemplo do mestre chinês foi
há muito esquecido pelas gerações. Hoje, predomina a pressa...
Viver é andar, é descobrir, é conhecer. No meu andarilhar de pintor, fixo a
imagem que se me apresenta no agora e retorno às coisas que adormeceram na
memória, que devem estar escondidas no pátio da infância. Gostaria de ser criança outra vez para resgatá-las com as mãos. Talvez tenha
sido o que fiz, pintando-as.
As coisas estão enterradas no fundo do rio da vida. Na maturidade, no ocaso,
elas se desprendem e sobem à tona, como bolhas de ar. Como se vê, a criação
se faz com o agora e com o tempo que recua. O pintor cria imagens para
expressar seus sentimentos. Estes podem ser do real ou formas abstratas,
pouco importa. Creio que sua criação e duração na obra do artista são
determinadas pelo subconsciente.
A memória é agaveta dos guardados, repito para sublinhar. O clima de meus
quadros vem da solidão da campanha, do campo, onde fui guri e adolescente. Na
velhice, perde-se a nitidez da visão e se aguça a do espírito. A memória pertence ao passado. É um registro. Sempre que a evocamos, se faz
presente, mas permanece intocável, como um sonho. A percepção do real tem a
concreteza, a realidade física, tangível. Mas como os instantes se sucedem
feito tique-taques do relógio, eles vão se transformando em passado, em
memória, e isso é tão inaferrável como um instante nos confins do tempo.
Escrever pode ser, ou é, a necessidade de tocar a realidade que é a única
segurança de nosso estar no mundo - o existir. É difícil, se não impossível,
precisar quando as coisas começam dentro de nós.
Em verdade, não sou um admirador das coisas que faço. Não sou uma pessoa
extasiada com seu fazer, como se eu merecesse um pedestal. Essa decantação da
forma em muitas águas, tanto nas palavras como nas linhas, na pintura, é uma
depuração, uma síntese que leva ao que chamo uma "transfiguração"
situada além da aparência. Importante é encontrar a magia que existe nas
coisas, na vida. Do contrário, seria apenas um testemunho visual de um
fenômeno ao alcance de qualquer um.
Não há um ideal de beleza, mas o ideal de uma verdade pungente e sofrida que
é a minha vida, é tua vida, é nossa vida, nesse caminhar no mundo. Sou impiedoso e crítico com minha obra. Não há espaço para alegria. Acho que toda grande obra tem raízes no sofrimento. A minha nasce da dor. Das
minhas raras alegrias, uma me vem à mente: criança, aguardo ansioso a chegada
do trem que traz a Bua (01).
Entendo que a vida é uma caminhada. Os ciclistas de meus quadros são
caminhantes, no fundo, sem meta. São seres desnorteados. No andar do tempo,
vão ficando as lembranças: os guardados vão se acomodando em nossas gavetas
interiores. Como temos cicatrizes! A vida foi nos causando essas feridas que
nos acompanham até o fim. Nós somos como as tartarugas, carregamos a casa.
Essa casa são as lembranças. Nós não poderíamos testemunhar o hoje se não
tivéssemos por dentro o ontem, porque seríamos uns tolos a olhar as coisas
como recém-nascidos, como sacos vazios. Nós só podemos ver as coisas com
clareza e nitidez porque temos um passado. E o passado se coloca para ajudar
a ver e compreender o momento que estamos vivendo.
O momento é cheio de uma totalidade. Somos alguém envolvido pelas coisas,
envolvido pela água, envolvido pelo vento, pelos componentes físicos. O que
me prende não é a nomenclatura dos elementos mas o próprio envolvimento. As
coisas são assim: encontramos a última palavra, elas se acabam. Quando eu
quero me ver livre, expressar tudo que tenho dentro de mim, lanço o quadro e
aparece a imagem. Mas a imagem continua sendo um enigma outra vez. Pensamos
que tudo apareceu revelado, e de fato se revelou: está visível, mas continua
o enigma. Eu apenas objetivei em forma o enigma que estava dentro. A
interrogação continua.
E a resposta não foi dada.
A vida dói... Para mim, o tempo de fazer perguntas passou. Penso numa grande
tela que se abre, que se oferece intocada, virgem. A matéria também sonha.
Procuro a alma das coisas. Nos meus quadros o ontem se faz presente no agora.
A criação é um desdobramento contínuo, em uníssono com a vida. O auto-retrato
do pintor é pergunta que ele se faz a si mesmo, e a resposta também é
interrogação. A verdade da obra de arte é a expressão que ela nos transmite.
Nada mais do que isso!
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